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Relatos de testemunhas de tragédia no RS realçam perguntas a responder

EDIÇÃO ESPECIAL

 A reportagem refaz o passo a passo do incêndio que deixou mais de 230 mortos. Sobreviventes relatam pânico vivido em boate que pegou fogo no domingo.

 Dezenas de pessoas morreram e centenas ficaram feridas em incêndio (Foto: Germano Roratto/Agência RBS)

 entenda_tragedia_boate_rs_620 (Foto: Editoria de Arte / G1)


O incêndio que atingiu a Boate Kiss, na madrugada deste domingo (27), resultou na morte de mais de 230 pessoas em Santa Maria, na região central do Rio Grande do Sul.
Ao longo do dia, G1, GloboNews, TV Globo e RBS ouviram dezenas de relatos dos sobreviventes (assista no vídeo ao lado à reportagem do Fantástico sobre as mortes).
Leia a seguir uma reconstituição de momentos-chave da tragédia – hora do show, início do incêndio, tumulto dentro do prédio com apenas uma saída e resgate das vítimas – e saiba que perguntas ainda precisam ser respondidas pelas autoridades.
show_boate_rs (Foto: Editoria de Arte / G1)
A festa "Agromerados": Foi organizada por alunos dos cursos de agronomia, pedagogia, zootecnia, medicina veterinária, técnico em agronegócio e técnico em alimentos da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Com ingressos a R$ 15 e classificação etária de 18 anos, teve grande divulgação e venda de entrada antecipada.
Atrações: No evento estavam programadas as apresentações das bandas Pimenta e seus Comparsas e Gurizada Fandangueira, além dos DJs Bolinha, Sandro Cidade e Juliano Paim.
Início: O público começou a chegar perto da meia-noite. Por volta da 1h, o grupo Pimenta e seus Comparsas subiu ao palco, de acordo com o líder da banda, Valderson Wottrich. A apresentação durou pouco mais de uma hora, terminando perto das 2h10. Em seguida, a Gurizada Fandangueira, que é de Santa Maria e se apresentava na boate pelo menos uma vez por mês, começou a tocar.
PERGUNTA A RESPONDER: A boate tinha os alvarás necessários para funcionar?
Por meio dos seus advogados, a direção da Boate Kiss classificou o ocorrido como uma "fatalidade" e disse que está em "situação regular, contando com todos os equipamentos previsíveis e necessários  para o sistema de proteção e combate contra o incêndio, aprovado pelo Corpo de Bombeiros, adequado às necessidades da casa e de seus freqüentadores".
Na manhã seguinte à tragédia, no entanto, o comandante do Corpo de Bombeiros da Região Central do Rio Grande do Sul, tenente-coronel Moisés da Silva Fuch, disse que o alvará de funcionamento da boate estava vencido desde agosto do ano passado. "Está vencido desde agosto. O alvará é necessário para o funcionamento da casa na sua normalidade", disse ao G1, destacando que o documento serve para atestar as condições de prevenção e combate a incêndios.
De acordo com o subcomandante-geral da Brigada Militar, coronel Altair de Freitas Cunha, as condições de prevenção contra incêndio da casa serão apuradas. "Recebemos alguns relatos de que os seguranças teriam barrado as pessoas até que elas pagassem a conta [...] Também estamos apurando o que provocou o incêndio e as condições de prevenção da casa."
O prefeito de Santa Maria, Cezar Schirmer, disse à GloboNews que os documentos estariam regulares, conforme atestado pelos bombeiros. Ele afirmou, no entanto, que é preciso investigar as autorizações.
O governador do Rio Grande do Sul, Tarso Genro, disse que o proprietário da casa deve se pronunciar oficialmente e apresentar todos os documentos. "Falar agora em culpa de alguém é uma falta de respeito ao trabalho que vem sendo feito. O faremos de maneira responsável. Hoje já vai ser ouvido o dono da boate. Ele terá que apresentar todos os documentos."
incendio_boate (Foto: Editoria de Arte / G1)
Origem do fogo: Durante a música "Amor de chocolate", do cantor Naldo, a banda utilizou dispositivos pirotécnicos como efeito visual. De acordo com baterista Eliel de Lima, a equipe técnica do grupo é responsável por controlar o espetáculo, comum nos shows e que "nunca deu problema".
O guitarrista do grupo, Rodrigo Martins, disse que o efeito especial durava quatro minutos, com faíscas do equipamento chamado "sputnik" sendo lançadas para cima. Ele afirmou que somente no início da música seguinte o incêndio foi percebido e defendeu que o fogo tenha começado devido a um curto-circuito nos fios do telhado da boate.
Segundo o estudante Murilo Tiecher e a fotógrafa Fernanda Bona, no entanto, o vocalista da banda teria acendido uma espécie de sinalizador. As faíscas teriam atingido o teto da boate e dado início ao fogo, que se alastrou rapidamente devido ao material usado para o isolamento acústico.
Pedido de socorro: De acordo com o major Cléberson Bastianello, o Corpo de Bombeiros foi acionado por volta das 2h30, pouco depois do início do incêndio.
Problema com o extintor: Segundo Rodrigo Moura, um dos vigilantes que trabalhavam na madrugada da tragédia, alguns seguranças tentaram apagar as chamas no teto da boate com extintores, mas o fogo tomou conta do local rapidamente, matando inclusive alguns de seus colegas.
Segundo o guitarrista do grupo Gurizada Fandangueira, Rodrigo Martins, um segurança e o próprio vocalista tentaram operar o equipamento, que não funcionou. "O segurança tentou usar o extintor, mas não funcionou. Ficamos desesperados. O cantor também tentou e não saía nada", disse em entrevista à Rádio Gaúcha.
O baterista Eliel de Lima relatou o mesmo problema. "Um segurança chegou com um extintor de incêndio, tentou apagar o fogo, mas o extintor não funcionou."
O estudante Murilo Tiecher disse que não sabia se o extintor não havia funcionado ou se os seguranças não souberam manuseá-lo de maneira adequada.
PERGUNTA A RESPONDER: Quantas pessoas estavam no local na hora do fogo?
O número de total de pessoas que estavam no interior da boate Kiss no momento em que o incêndio começou ainda é desconhecido. Segundo informações da própria casa noturna, a capacidade máxima é para mil clientes.
De acordo com o delegado Sandro Meinerz, que é responsável pela perícia, informações coletadas pelas equipes de investigação dão conta de que o público na hora da tragédia era de aproximadamente mil pessoas. O Corpo de Bombeiros, no entanto, estima que o número era maior, perto de 1,5 mil.
tumulto_boate (Foto: Editoria de Arte / G1)
A gente pediu para as vítimas saírem, tinha bastante gente ali. No meio do tumulto, começaram a se pisotear, teve gente que não teve tempo de sair"
Rodrigo Moura, segurança
Eu estava espremida na parede e só consegui escapar porque me puxaram. Fui engatinhando até a saída, com pessoas passando por cima"
Shelen Rossi, sobrevivente
Pânico e correria: Assim que perceberam o início do incêndio, centenas de pessoas ficaram desesperadas e começaram a correr em busca de uma saída para a rua.
Luciene Louzeiro disse que muita gente morreu pisoteada porque as pessoas caíam. As mulheres também estavam de salto, o que dificultou ainda mais a saída.
"Lembro que me prensaram contra a parede, e havia umas gradezinhas na saída que, com a força do pessoal empurrando, quebrou. Aí mandaram a gente passar por baixo, só que não consegui, estava com medo de passar e acabarem me pisoteando. Aí alguém me derrubou, eu caí e caiu um guri junto. Consegui me agarrar nele, segurei o colarinho da blusa e saí", contou.

Porta bloqueada: Murilo de Toledo Tiecher, de 26 anos, estudante de medicina, relatou que, inicialmente, seguranças da boate tentaram impedir a saída dos clientes, mas que logo perceberam a fumaça e liberaram a passagem.
Jonathas Castilhos também disse que os seguranças bloquearam a porta da boate, o que teria atrapalhado a evacuação. "Dei sorte, estava perto da saída quando vi que começou o incêndio. Mesmo assim, os seguranças trancaram porque queriam as comandas. Eles abriram, mas ficou mais ou menos um minuto e meio trancado", relatou o sobrevivente.

Shelen Rossi, de 19 anos, disse que logo após o fogo começar, as pessoas correram para perto da porta de saída, que foi trancada pelos seguranças. "Eu estava espremida na parede e só consegui escapar porque me puxaram. Fui engatinhando até a saída, com pessoas passando por cima."

Luciene também disse que alguns seguranças barraram as pessoas que tentavam sair sem pagar a comanda. "Acho um absurdo as pessoas morrendo e eles pensando no dinheiro. Foi um filme de terror, horrível ver aquelas pessoas caindo e morrendo."
Grade atrapalhando: Testemunhas disseram que a saída da boate foi dificultada por uma grade colocada perto da porta para organizar a fila de entrada. "Tinha só uma saída e começou a afunilar por causa da grade que eles põem para organizar a fila de entrada. Teve empurra-empurra, todo mundo se espremendo, eu tive que pular a grade para poder me desvencilhar", disse Tiecher.
Segundo ele, as pessoas derrubaram grade e porta, o que fez muita gente cair no chão e acabar pisoteada, uns tropeçando em cima dos outros. Ele disse ainda que somente após cerca de dois minutos, quando a fumaça já estava saindo pela porta, os seguranças teriam passarado a ajudar as pessoas a saírem do local.
Em entrevista ao Domingão do Faustão, uma jovem chamada Andiara relatou que essa espécie de "biombo" trancava a porta de entrada, que teria no máximo dois metros de largura e que possibilitava a passagem de apenas duas pessoas por vez.
Fumaça
Kellen Rebello da Silva disse que, ao sair da boate, olhou para trás e viu sair fumaça branca. Em segundos, a fumaça ficou preta. "Foi questão de 2 minutos no máximo, foi muito rápido."
Ela contou que as pessoas que estavam no banheiro e em um ambiente superior – de onde não dava para enxergar o palco – só perceberam quando já havia fumaça e viram a correria. "Ouvi pessoas dizendo que todo mundo estava se direcionando ao banheiro porque achava que lá era a saída, já que não dava para enxergar."
"Todo mundo saindo preto de fumaça, aquele monte de gente no chão, sangue. No começo, nem eu achava que ia ser tão grave, achava que eles iam conseguir apagar", disse outro presente à festa.
PERGUNTA A RESPONDER: Por que a maioria das vítimas morreu no banheiro?
O capitão da Brigada Militar Edi Paulo Garcia disse que a maioria das vítimas tentou escapar pelo banheiro do estabelecimento e acabou morrendo. "A cena é triste de ver. São muitos jovens lá, o espaço era muito pequeno [...] Tirei mais de 180 pessoas dos banheiros. Eles estavam tentando fugir pelos banheiros", disse.
Segundo o estudante de medicina Murilo de Toledo Tiecher, muitas pessoas foram para a porta dos banheiros achando que era a saída da boate e acabaram ficando presas ali. Um dos motivos seria porque as vítimas estavam desorientadas por causa da fumaça.
Outras testemunhas também disseram que o ambiente era bastante escuro e que a falta de sinalização fez com que eles pensassem que ali era uma saída. "Havia um monte de gente, uns por cima dos outros. Teve gente que entrou no banheiro achando que fosse a porta e não conseguiu mais sair. Desmaiaram, morreram no banheiro", disse o estudante Murilo de Toledo.
O analista de sistemas Max Müller, de 33 anos, ouviu relatos de que frequentadores da boate morreram porque não sabiam qual era o caminho certo que levava até a saída. "Foi o pior de tudo. As pessoas tentavam sair da boate e na verdade estavam indo parar no banheiro. Pensavam que era saída. O fogo se alastrou de uma forma tão rápida que a boate ficou tomada por fumaça e muitos morreram asfixiados."
resgate_boate (Foto: Editoria de Arte / G1)
tragedia_boate_300 (Foto: Editoria de Arte / G1)
Bombeiros chegam rápido: Várias testemunhas afirmaram que o Corpo de Bombeiros chegou ao local da tragédia rapidamente, entre três e cinco minutos depois do chamado.
"Teve atendimento muito rápido. Chegou ambulância, chegou polícia. O pessoal quis ajudar quebrando [as paredes da casa] para ver se tinha mais saídas para o pessoal que estava lá dentro", disse Aline Santos Silva, de 29 anos.
Sobreviventes ajudam no resgate: Muitas pessoas que conseguiram sair da boate ainda ajudaram a socorrer as vítimas. "A gente puxava as pessoas pelo cabelo, pela roupa, muita gente saía só de calcinha e cueca, muitas sem camiseta, talvez para se proteger da fumaça", disse Murilo de Toledo Tiecher.
"Todo mundo que estava ali fora voltou e começou a puxar quem estava dentro e puxava por onde dava, pela mão, pela cabeça", completou.
Jonathas Castilhos ajudou a socorrer amigos e desconhecidos. "Do lado de fora, comecei a reunir pessoas, pude ajudar a levar para hospitais."

O estudante Rafael Urbaneto Peres disse que passou perto do local da tragédia por volta das 3h10 e viu uma fumaça densa e grande movimentação de ambulâncias. "Fui abordado por um cidadão de camiseta e par de tênis gritando, chorando, aos prantos, e ele dizia que a Kiss havia pegado fogo e havia pessoas mortas. Vi pessoas nas proximidades sendo carregadas com dificuldade de respirar."
VEJA AS PRINCIPAIS FOTOS DA TRAGEDIA:
28 de janeiro - Família e amigos de Heitor de Oliveira, uma das vítimas do incêndio na boate Kiss, participam do enterro do jovem de 24 anos, no cemitério Santa Rita
27 de janeiro - O incêndio na boate de Santa Maria deixou mais de 200 mortos

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